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A economia esdrúxula da Internet

 

Renato Sabbatini


Apesar de todo o alarde na mídia, pode estar acabando o interesse dos investidores na "nova economia", caracterizada pelas "dot-coms", ou empresas baseadas exclusivamente na Internet, pelo menos em algumas categorias de sites. Comércio eletrônico direto com o consumidor (o que os americanos chamam de B2C, ou "business-to-consumer"), e sites especializados em conteúdo estão entre as baixas dos últimos 30 dias na Bolsa de Valores.

Um exemplo: a mega-empresa Amazon.com, que começou como uma livraria virtual, mas que hoje em dia vende muitas outras coisas pela Internet, perdeu mais de 40% do valor de suas ações desde dezembro. Note bem: a Amazon era o papel mais procurado pelos investidores, pois é uma empresa sólida, que vende quase 1 bilhão de dólares por ano, e entrega cerca de 1 milhão de ítens por dia. O seu principal dono e presidente, o financista Jeff Bezos, foi eleito o Homem do Ano de 1999 pela revista Time, pela influência que teve no desenvolvimento do comércio eletrônico nos EUA. No entanto, a Amazon não dá um centavo de lucro há cinco anos, e, segundo Bezos, não dará ainda por mais uns dois ou três anos. Como acumula um prejuízo da ordem de 400 milhões de dólares, é óbvio para qualquer um que jamais será rentável, e que quem fez investimentos a longo prazo, esperando receber dividendos, vai se ferrar. Só sairam ganhando os especuladores, os "day traders", que são gente que compram ações de manhã e vendem à tarde, como o próprio nome diz. Os bancos que financiaram a operação, evidentemente, também sairam ganhando, pois ao sentirem que a festa está acabando, correram para vender seus papéis da Amazon no mercado, ajudando mais ainda a precipitar a queda do seu valor.

E porque não dá lucro? Comércio é uma coisa que só não dá lucro se a pessoa vender por menos do que compra, aparentemente. Mas esse não é o caso da Amazon e de outras empresas comerciais on-line. É um mundo bizarro, um mundo de faz-de-conta. Para o leitor entender, vou dar um exemplo que conheço bem: o da área da saúde. Uma loja de produtos naturais e medicamentos alternativos, chamada MotherNature, é a maior do mundo, com mais de 40 mil ítens em estoque, desde remédios homeopáticos a fraldas feitas com algodão livre de agrotóxico. Em 1999, essa loja captou a atenção de 5 milhões de visitantes, o que é um número extraordinário. Destes, 186 mil compraram alguma coisa, ou seja, apenas 3,7% dos visitantes (a chamada "taxa de conversão"). O valor médio de um pedido foi de 31 dólares, com uma margem de lucro de 5%. O faturamento bruto anual foi de 5,77 milhões de dólares. Um bom negócio, diria o leitor, considerando que é totalmente virtual, ou seja, não precisa de uma rede física de farmácias ou lojas? Ledo engano. O faturamento líquido anual foi de reles 288 mil dólares, ou seja, menos que o de uma farmácia grande. Pior: para adquirir esses clientes (gastar em propaganda e no desenvolvimento do site, estocagem de ítens, embalagem e envio, etc.), a MotherNature gastou US$ 290 por cliente! Com isso, teve um prejuízo operacional de 54 milhões de dólares, quase dez vezes o que faturou. Isso acontece já há dois anos e não parece que vai melhorar.

Não é a toa que os investidores perderam o ânimo. As ações da MotherNature, que começaram a ser vendidas a US$ 10 cada, cairam no final de março para US$ 5,5. Foi uma perda de 60 % em relação ao seu valor máximo, que foi de US$ 14. E a queda continua, à medida que os investidores se mudam para outras bandas. Resultados como esse são a norma em 99% dos sites de venda para consumidores. Se os investidores não acreditarem no futuro (que, acredito, será bem melhor), essas empresas estão condenadas a fechar, pois não conseguirão mais tomar dinheiro no mercado para financiar seus rombos absurdos. Imaginem então projetar esses números para o incipente mercado brasileiro, 15 ou 20 vezes menor que o americano.

Quanto aos sites de conteúdo, a equação econômica ainda é mais inviável. Elas estão vendo suas ações massacradas na Bolsa nos últimos quinze dias. O motivo é que, passado o primeiro entusiasmo, os investidores viram o que era óbvio para qualquer pessoa de bom senso, ou seja, os sites de conteúdo não têm como ganhar dinheiro e dar lucro. O motivo principal é que, para atrair visitantes, a maioria desses sites oferece uma montanha de informação e de serviços totalmente de graça (pois essa é a expectativa dos usuários, na cultura da Internet). Esperam ganhar dinheiro com o que? Com a boa e velha propaganda, ou, eventualmente, com sites de comércio eletrônico associados. Nenhum dos dois modelos de renda funciona. A propaganda é insuficiente para pagar os custos astronômicos de criar e manter o site, e o comércio eletrônico, bem, já vimos que não funciona nem para mega-lojas dedicadas, quanto mais como um reles apêndice de um site de conteúdo.

Novamente, voltando à área de saúde na Internet, os dados são cruéis: as 14 mais importantes empresas dessa área com ações negociadas publicamente perderam 26 bilhões de dólares (isso mesmo, bilhões), em valor de mercado nos último 30 dias, com perdas médias de 70% (38% apenas nos primeiros 15 dias de março, quando os investidores começaram a se retirar massivamente dessas ações). A mais importante empresa de informações médicas on-line, a MedScape, com 1,2 milhão de médicos registrados, caiu 54% em uma semana, apesar de ter anunciado uma fusão milionária com a segunda mais importante empresa, a MedicaLogic.

Ao longo deste ano, a previsão é que mais de 50 empresas de Internet com ações na Bolsa vão ser incapazes de atrair mais dinheiro dos investidores. Para onde eles estão indo então? Para a nova moda, o comércio eletrônico de empresa para empresa (B2B ou "business to business").

Em várias ocasiões tive a oportunidade de escrever nesta coluna sobre a inconsistência dos modelos econômicos que regem a Internet comercial. O tempo acabou dando razão aos meus argumentos (não somente meus, aliás, mas de muitos outros analistas de bom senso). O massacre contínuo que vem ocorrendo nos últimos 30 dias na bolsa de valores NASDAQ, dos Estados Unidos, que é o termômetro da saúde econômica e do interesse dos investidores nas empresas baseadas na Internet, indica um caminho talvez irrecuperável para o que se pensava ser o modelo econômico para muitos tipos de sites comerciais na Web. A queda atingiu uniformemente, pela primeira vez, todos os tipos de companhias. Nem as de comércio eletrônico entre empresas ("business-to-business") escaparam, apesar de serem consideradas as mais rentáveis a médio prazo.

A impressão que se tem é que as empresas que estão ambicionando entrar no complexo mundo dos negócios entre empresas subestimaram fortemente as dificuldades envolvidas, tanto tecnológicas quanto mercadológicas, e os prazos de retorno do capital investido. Vou dar um exemplo, em área que conheço bem: o setor de saúde. Uma das empresas que obteve maior sucesso em seu lançamento inicial de ações no mercado (IPO) nos EUA foi a HealthEon/WebMD. Ela se autodenominada "a primeira empresa com soluções de ponta a ponta" no setor, oferecendo desde sites de conteúdo, voltado para pacientes e para profissionais de saúde, até complexos sistemas de conectividade entre os provedores de saúde, fornecedores e vendedores de bens e serviços (laboratórios farmacêuticos, hospitais, clínicas, farmácias, etc.) e usuários. Todo a filosofia de software da HealthEon se baseia na Internet como meio de conectividade, e na interface da Web, como mecanismo de acesso; o que é considerado super-atualizado, e a tendência do futuro. Para consolidar sua estratégia, a HealthEon gastou bilhões de dólares adquirindo empresas de software médico-hospitalar, ou fazendo parcerias com seguradoras médicas e redes de provedores de serviços de saúde. Desembolsou também algumas centenas de milhões de dólares para desenvolver o conjunto proprietário de softwares que permitem fazer a "mágica" a que se propôs sua filosofia, e seduzir os investidores com sua estratégia.

Pois bem, apesar de tudo isso, e do mercado trilionário de transações do sistema de saúde americano (gastos de 1,2 trilhões de dólares por ano, três vezes o PIB brasileiro), a empresa tem tido enorme fracasso em sua atuação no mercado. No ano passado, processou apenas 1 milhão de transações (a maior parte constituida de cobranças de atos médicos e despesas a serem pagas por seguradoras filiadas ao sistema). Somente três sistemas de saúde estavam filiados à HealthEon (todas menores que a UNIMED de Campinas em número de médicos e de pacientes), apesar de 700 seguradoras terem sido contactadas e contratadas, num esforço gigantesco e carissimo de vendas e marketing. Existem muitos motivos para esse fracasso, mas o principal deles é a grande resistência contra mudanças baseadas em tecnologia da informação no setor saúde, e o conseqüente medo que as empresas têm de colocar informações na Internet, com a sua notória falta de segurança. Os bancos já perderam esse medo faz tempo, e essa é a chave do seu estrondoso sucesso no mundo do Internet Banking.

É portanto, de espantar que empresas brasileiras tenham a pretensão de fazer dinheiro com conectividade e negócios B2B em um mundo tão complexo, no qual a Internet não mudou nada, ou seja, onde a complexidade reside no software, nas relações comerciais e contratuais, na confiança entre parceiros, etc. Ao contrário: a Internet pode ser um estorvo, na medida em que ligações ponto-a-ponto, ou mediadas por redes tradicionais de computadores, são percebidas como sendo mais seguras e estáveis. O ataque de "hackers" realizado recentemente contra os grandes sites de comércio eletrônico assustou enormemente o setor. Se um guri de 15 anos, agindo a partir de sua casa, é capaz de derrubar por horas as transações comerciais de um grande site, e ainda mais, existindo poucas defesas contra isso; a situação pode ser considerada prá lá de crítica.

Outro fator adicional é que muitas empresas da Internet entram com "a cara e a coragem" em setores econômicos que desconhecem quase que inteiramente. Voltando ao exemplo do setor saúde, a maioria das empresas que está atuando em "eHealth" (Saúde na Internet) foi fundada por financistas, ex-banqueiros de investimentos, pessoal da área de informática, etc., desprovidos de qualquer vivência na área de gestão e de operação em sistemas de saúde. Não é de se admirar que tenham uma grande chance de não dar certo. Acredito que as empresas que terão as maiores oportunidades na Internet nessa área são as que estão fazendo a transição em sentido contrário, ou seja, já detém posições importantes no mundo real, em matéria de processamento de pedidos, logística, distribuição, etc., e que já tenham uma forte cultura interna de informática, independente da Internet. Dois bons exemplos na área da saúde são a Rimed, tradicional distribuidora de materiais médico-hospitalares, e o Dental Gaúcho, que vende materiais e equipamentos para dentistas.

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Renato M.E. Sabbatini é professor e diretor associado do Núcleo de Informática Biomédica da Universidade Estadual de Campinas, colunista de ciência do Correio Popular, e colunista de informática do Caderno Cosmo. Email: sabbatin@nib.unicamp.br

Veja também: Índice de todos os artigos anteriores de Informática do Dr. Sabbatini no Correio Popular.



Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 31/3 e 21/4/2000 .
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