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Analfabetismo científico

 

Renato Sabbatini

O conceito de quem é analfabeto nas sociedades desenvolvidas está mudando rapidamente. No Brasil, para nós, analfabeto ainda é a pessoa que não "tem as letras", ou seja, não sabe ler e escrever. A estatistica brasileira para essa classe de pessoa, que, evidentemente, fica completamente marginalizada em qualquer sociedade moderna, é vergonhosa: temos 16% de analfabetos completos (só para comparar, a Argentina tem quatro vezes menos).

No entanto, a coisa se agrava quando usamos o conceito de analfabetismo funcional, definido há algumas décadas atrás pela UNESCO: é analfabeto funcional quem, apesar de saber ler e escrever formalmente, não consegue compor e redigir corretamente uma pequena carta solicitando um emprego. Acho que não temos estatísticas no Brasil a respeito dessa classe de analfabetismo, mas desconfio que seja um número bastante grande, da ordem de 40% ou mais da população. Esse número sobe ainda mais se formos avaliar o analfabetismo funcional mais avançado, que se exige de quem terminou pelo menos o primeiro grau, que é a capacidade de ler um texto, e demonstrar que o entendeu, através de uma redação sintética. Como mostram os resultados dos exames vestibulares, e até do famigerado "provão", feito após a conclusão de um curso superior, ainda existe muita gente que já passou pelo segundo grau e pela universidade e que ainda é incapaz de cumprir corretamente esse objetivo tão básico.

Mas um dos analfabetismos mais sutis e que mais estragos causa é o analfabetismo científico, ou seja, a ignorância sobre os conhecimentos mais básicos de ciência e tecnologia que qualquer pessoa precisa ter para "sobreviver" razoavelmente em uma sociedade moderna. Atualmente, vivemos cercados de um sem-número de equipamentos, processos e funções sofisticadas, que a maioria das pessoas utiliza corriqueiramente sem nem mesmo refletir sobre o que está por trás daquilo. São elementos do cotidiano que têm um enorme impacto em nossas vidas, e sobre os quais é imprescindível saber alguma coisa, nem que seja o princípio básico de funcionamento, a história da descoberta, etc. Curiosamente, o ensino de ciências no primeiro e segundo grau se concentra em princípios básicos da biologia, física, quimica, etc., que são conhecimentos muitas vezes bastante distantes do cotidiano das pessoas, mas se "esquece" de explicar coisas de muito mais relevância nas suas vidas. Esse é, ao meu ver, um fenômeno extremamente preocupante, pois a ignorância científica básica abre as portas da mente da pessoa para os conceitos exóticos e esotéricos os mais absurdos, sem o menor fundamento cientifico, com grandes prejuizos para o individuo e para a sociedade, como já escrevi em diversas ocasiões nesta coluna.

O que é importante saber? Acho que um bom ponto de partida é fazer uma lista dos inventos mais importantes, e que são, justamente, aqueles que estão onipresentes na vida moderna. Uma pequena lista (e o leitor pode ir se perguntando quais deles conhece e se sabe como funciona) seria: a engrenagem, o relógio, o motor de explosão, o motor elétrico, o gerador elétrico, a bateria, a lâmpada elétrica, o sistema hidráulico, o telefone comum e o celular, o fax, o computador, as redes (como a Internet), o forno de microondas, o rádio, a televisão, o videocassete, o disco CD, o sistema de som, o avião, o motor a jato, o rolamento de esferas.

Quanto ao conhecimento científico propriamente dito, qualquer pessoa minimamente bem informada precisa saber algumas noções de física nuclear (não estou brincando...), energia, cosmologia, astronomia, genética e biologia da célula, organização e funcionamento do cérebro, engenharia genética, eletricidade e eletrônica, ecologia e evolução, ciências da terra (meteorologia, por exemplo), coisas básicas de medicina, como imunologia, vírus e bactérias, doenças cardíacas e mentais, prevenção de doenças, farmacologia, etc. É importante também o conhecimento dos fenômenos fundamentais dos nossos micro e macro-universos.

Onde achar toda essa informação para aprender? Como a escola não supre o grande público e os nossos jovens com recursos de aprendizado sobre esses assuntos, a solução é o velho e eficiente auto-didatismo. Existe uma coleção antiga da Editora Abril, chamada "Como Funciona", excelente, que tem explicações para leigos sobre quase todas essas tecnologias. Existem alguns "sites" na Internet, também, embora todos sejam apenas em inglês, infelizmente. Alías, acha-se na Internet, atualmente, a esmagadora maioria das informações que se queira ter, bastando saber utilizar corretamente um mecanismo de busca, como o Altavista (www.altavista.com), Radar UOL (www.radaruol.com.br), etc.

No final do século passado, a Universidade Harvard montou uma coleção de 50 e poucos livros, que continha o "conhecimento essencial" que toda pessoa precisava ter na época. A maioria dos livros era de filosofia, lei, literatura e artes, e alguns poucos de ciências, todos tirados dos clássicos gregos e romanos, e dos grandes intelectuais da Renascença em diante. A Encyclopaedia Britannica tem uma coleção maravilhosa, chamada de "The Great Books" (os Grandes Livros), que tem cerca de 200 das mais importantes obras do humanismo e da ciência ocidental, que se considera o fundamento básico de conhecimento de alguém que queira se dizer bem-informado.

Eu não chegaria a tanto, pois existem alí algumas obras que atualmente não são estudadas nem mesmo nos respectivos cursos superiores de filosofia e letras. Mas é indubitável que uma ponderável parcela da população não tem o acesso a esses conhecimentos, na maioria das vezes por deficiências abismais do nosso sistema educacional, combinado a uma falta de incentivo à leitura, à curiosidade e ao debate de idéias (sem falar na falta de recursos para comprar livros para as bibliotecas, públicas ou particulares).

A era do rádio e da televisão aniquilou no espírito de muitos jovens o gosto pela leitura e pela aquisição ativa do conhecimento, e isso é uma pena.
 
 


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 28/5/99.

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