Em maio de 1998, revoltado com a atitude pouco crítica da imprensa em relação às inúmeras manifestações pseudocientíficas em medicina e outras áreas, escrevi na minha coluna do Correio Popular uma espécie de manifesto, intitulado "Uma Sociedade de Céticos". Nele, convocava todas a se unirem em uma associação as pessoas céticas e racionalistas que quisessem exercer uma militância maior contra as inúmeras picaretagens e fraudes pseudocientíficas que assolam nosso país. O resultado dessa chamada, depois de três anos, foi muito maior e melhor do que eu imaginava. Hoje a Sociedade Brasileira de Céticos e Racionalistas, como é chamada (e da qual sou presidente), tem 162 membros em seis países, e realiza debates diarios, com enorme vigor, entusiasmo e participação, através de uma lista de discussão on-line (veja os endereços no final do artigo). Entre os temas debatidos estão alguns tão variados como a homeopatia, a acupuntura, florais de Bach, a crença de 99% dos brasileiros em Deus, as pseudoverdades sobre o bioterrorismo, teoria da evolução e criacionismo bíblico, parapsicologia, vozes misteriosas, previsões de Nostradamus, ateísmo e religião, revelações científicas do Livro de Jó, a vida de Jesus Cristo no canal Discovery, astrologia, numerologia, ufologia, física quântica e misticismo, o analfabeto que passou no vestibular, mulheres e ceticismo, clonagem humana, mitos urbanos, pseudopsiquiatria, curas pela fé, comunicação subliminar, e muito mais. Só em dezembro já foram mais de 400 mensagens. Tudo é discutido do ponto de vista da ciência e da razão. Qualquer pessoa pode assinar a lista da Internet, mesmo que não seja sócio.
No site da Sociedade, uma galeria de fotos de personalidades exibe os "heróis" do movimento racionalista (alguns são cientistas e escritores conhecidos, como Carl Sagan, Isaac Asimov, Albert Einstein, Richard Dawkins, Bertrand Russell, Stephen Jay Gould; outros são militantes menos conhecidos do grande público, como Phillip Klass, Ray Hyman, Paul Kurtz e Martin Gardner). Dois mágicos e prestidigitadores, Harry Houdini e James Randi figuram com destaque na galeria, pois usaram seus dons consideráveis para comprovar, todas as vezes que tentaram, sem exceção, que supostas almas de outro mundo, levitações misteriosas, "poltergeists" e façanhas de telepatia e telecinese, eram apenas reles truques de mágica ou fraudes grosseiras. Randi foi o desmistificador do famoso Uri "Entortador de Colheres" Geller, que processou Randi por danos morais e financeiros (e perdeu). Ray Hyman e Paul Kurtz foram os fundadores, entre outras coisas, das entidades mais vigorosas e ativas do movimento cético americano, a CSICOP (Committee for the Scientific Investigations on Claims of Paranormal, ou comité para a investigação científica das alegações de paranormalidade. O nome já diz tudo. Em décadas de atividade, o CSICOP nunca encontrou um caso de paranormalidade que fosse inteiramente inexplicável pelas leis científicas conhecidas, apesar de oferecer milhares de dólares de recompensa). Outros membros importantes do movimento cético criaram dicionários de ceticismo, sites contra fraudes na saúde, e muitos outros.
Desde a minha iniciativa, os movimentos céticos se multiplicaram no Brasil, e têm demonstrado sua força. Entre outros, existe a Sociedade da Terra Redonda (assim chamada em contraposição à Sociedade da Terra Plana, em que alguns malucos acreditam que o planeta não é um corpo esférico, como a ciência já comprovou amplamente) e o Fórum Cético Brasileiro. Autores tem se consagrado neste terreno, como o jornalista científico Ricardo Bonalume Neto, que escreve uma coluna na Revista da Folha de São Paulo, Roberto Takata, que comanda uma coluna semelhante no Observatório da Imprensa, e Daniel Sottomaior, que edita o site Informação e Saúde e que entrou no Ministério Público com uma ação contra as farmácias homeopáticas.
Não é completamente inócuo ser um cético racionalista em nossa sociedade de crentes. Um professor e pesquisador gaúcho, membro da SBCR, Renato Zamora Flores, está sendo processado por um psiquiatra italiano que lidera uma escola de psicologia estranhíssima, por tê-lo acusado de charlatanismo. Interesses financeiros contrariados (como os dos profissionais do esoterismo) têm levado, em alguns casos, até a ameaças anônimas por telefone. Eu mesmo, como resultado de algumas colunas no Correio, fui alvo da fúria e da crítica intemperada de alguns leitores.
São necessários movimentos deste tipo? Acredito que sim. O surgimento das leis de proteção ao consumidor representou um grande avanço, pois qualquer empresa que faça alegações extraordinárias, que depois não funcionam, pode ser alvo de um processo jurídico civil, ou até criminal, se se comprovar que a saúde do consumidor foi afetada. No entanto, não é suficiente, pois elas são efetivas apenas quando existe um ceticismo saudável por uma boa parcela da população. O ceticismo é intrínseco à ciência moderna, baseada no experimentalismo e nas leis rigorosas da lógica. Ele precisa ser ensinado. Faltam obras para crianças em idade escolar, por exemplo, que incentivem a mentalidade crítica e o ceticismo baseado na razão e na ciência.
Como disse muito bem o jornalista Mauricio Tuffani, em seu interessante artigo "Céticos: Os Inquisidores da Razão", publicado na revista de divulgação científica Galileu, "o ceticismo é melhor do que a credulidade […] É preciso desmascarar fraudes e alertar a sociedade para elas. Mas é preciso ser cético também com a ciência."
Lista de Discussão da SBCR: www.yahoogrupos.com.br/group/sbcr
Sociedade da Terra Redonda: www.strbrasil.com.br
CSICOP: http://www.csicop.org
Sabbatini, R.M.E.: Uma sociedade de céticos, Correio Popular, 1/5/98.
Tuffani, M.: Céticos: Os Inquisidores da Razão. Revista Galileu.
Veja também: meus artigos anteriores sobre pseudociência e paranormalidade e sobre medicina alternativa no Correio Popular.
Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 21/12/01 .
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